Quatros anos na universidade, rabiscos dos sonhos no papel, um coração ávido para contribuir pelo desenvolvimento de seu país, o sonho do primeiro emprego e a vida planejada. No entanto, a realidade, depois de transpor os portões da universidade, é outra. Uma realidade bem mais cruel do que muitas vezes imaginamos.

A saga por detrás de tudo isso é que muitas empresas, inclusive aquelas que oferecem estágios através do Programa de Estágios do Instituto de Ensino e Formação Profissional, encontraram um jeito de ter  sempre alguém para trabalhar como estagiário, e não precisam contratá-lo ao final do estágio. E, muitas vezes, trabalhando de graça - o bem pensado estágio não-remunerado.

Em outras palavras, você é recém-formado sem experiência profissional e uma empresa lhe oferece uma oportunidade de estágio por alguns dias ou meses e quando termina o contrato te despede porque, alegadamente não pode te contratar, e coloca um outro estagiário em seu lugar, para continuar o trabalho, com um novo contrato de estágio. E o ciclo se repete.

Eu tenho um irmão que cursou Relações Públicas e Secretaria na UniCV e foi contratado como estagiário, através do Programa de Estágios do IEFP, por um Liceu na ilha do Fogo. Findo o período de estágio, não o poderiam contratar (como explicaram) e, precisando de alguém para trabalhar enquanto o Ministério da Educação contrataria um outro estagiário, o pediram se podia continuar o trabalho por mais alguns dias, de graça.

Essa é a prática. Depois do estágio você é despedido, um novo estagiário assume seu lugar e assim continuamos.

Quer isso dizer que a empresa não precisa de você como profissional quadro, você é descartável, porque sempre poderão encontrar um outro estagiário como você, para fazer o trabalho, com um novo contrato. E você vai para casa esperar até surgir uma oportunidade de emprego ou procurar um outro estágio em uma outra empresa.

E o pior de tudo, muitas vezes de graça. Nem todos os estágios são remunerados, sabemos disso. Sorte de quem conseguir um estágio remunerado, esperando na fila do IEFP ou se cair no gosto de alguma empresa - porque alguns pensam que estão fazendo um favor.

Essa piada precisa parar. O pior de tudo isso é que os nossos governantes e os próprios gestores das instituições de controle do governo fazem de desentendidos quanto aos apelos e reclamações para com esta prática.

Eu não sei se existe uma lei (talvez eu precise ler mais os BO) que impeça as empresas de tais práticas, mas passou o tempo de o governo fazer uma intervenção neste sentido. Ou talvez, seja uma forma de camuflar, ao fazer propaganda dos dados estatísticos do Programa de estágios do IEFP, a promessa de empregos das campanhas dos partidos políticos no país.

Em uma atualização recente o IEFP de Cabo Verde informou que "cerca de 14 mil jovens foram abrangidos nos últimos sete anos com Estágios Profissionais", mas a pergunta é: quantos foram contratados? Pra quê eu preciso de um estágio se não vou ser contratado?

Por exemplo, quando regressei dos estudos no Brasil, uma empresa em Palmarejo que mensalmente renova seu staff de estagiários que trabalham para a empresa desde sempre (funcionários tem uns dois para despiste ao governo), me ofereceu uma "oportunidade". Segundo eles, eu precisava trabalhar na empresa durante um mês para terem a certeza de que eu tinha a habilidade que precisavam (em uma área que eu já trabalho há vários anos, inclusive já fiz trabalhos de graça para o dono da mesma), para depois me contratar como estagiário. Então, eu tive que dizer ao dono da empresa que o tal trabalho é uma brincadeira que faço há vários anos e que eu não fui cursar para trabalhar de graça para nenhuma empresa, mesmo que para isso eu tenha que pedir esmolas na rua. E, se ele quisesse eu poderia trabalhar uma semana de graça e ponto. Ele não aceitou a minha proposta, me disse que depois me diria qualquer coisa e, oito anos depois, ainda não me disse nada. 

Mas tudo bem, pelo menos o meu nome não consta na lista dos estagiários staff da empresa.

Essa é a prática comum nessa "moda" de estágios em Cabo Verde. 

Empresas que precisam de estagiários devem pensar numa forma de os recrutarem ao final do estágio. Por que não o fazem?

Na Lei nº 15/IX/2017 que estabelece as regras e os incentivos a que deve obedecer a realização de estágio profissional em empresas privadas e públicas, lê-se que um dos objetivos do estágio profissional empresarial é o de facilitar a inserção de pessoas formadas em áreas inovadoras, promover o enraizamento dos mais habilitados e qualificados no tecido empresarial cabo-verdiano, através da inserção de mestrados e doutorados nas empresas, com o objetivo de promover a investigação e desenvolvimento e a inovação e a ligação da ciência com as empresas e mais blá blá blá, mas a pergunta é: condiz com a realidade? As empresas no país leem este BO? Conhecem essa lei? Funciona na empresa? Dão valor ao estagiário?

Não!!!

Na referida lei é dito ainda que o objetivo do estágio é complementar e aperfeiçoar as competências socioprofissionais dos jovens qualificados, através da frequência de um estágio em situação real de trabalho, mas, se depois de trinta ou cento e oitenta dias (seis meses) a empresa não contrata o estagiário, pra quê estagiar?

Pensando assim, tanto faz fazer estágios ou não, certo?

E quando o estágio não é remunerado como pagar o transporte, o almoço, comprar uma camisa nova?

Outra grande verdade sobre os programas de estágios é que o estagiário, na maioria das vezes é o "menino de mandado" da empresa, o faz-tudo, e às vezes a empresa nem tem um tutor para orientar o estagiário.

Como aconteceu comigo uma vez, prestei um serviço à empresa e algum tempo depois me contrataram como estagiário, responsável pelo mesmo trabalho que eu criei. Eu não tinha um orientador, mas o contrato era de estágio. 

Sem contar quando o dono da empresa é daqueles seres humanos brutos que não entende nada sobre administração de empresas e você como o estagiário precisa engolir todo o desaforo, como se a empresa estivesse fazendo um grande favor ao lhe fazer um contrato de estágio. 

Me desculpem a sinceridade, mas isso é crime. É ilegal. No entanto, considerando que existem até advogados que defendem a causa de bandidos e ladrões, então, nem vale a pena falar da lei neste contexto. Simplesmente não funciona e reclamar não resolve nada.

Mas alguém pode perguntar: a experiência do programa de estágio não tem nenhum valor para o estagiário se não for contratado pela empresa?

  1. Sim, tem um grande benefício para a empresa que pode ter alguém trabalhando por vários meses, muitas vezes de graça;
  2. Sim, tem um grande benefício para o estagiário se depois do trabalho de graça conseguir um contrato de trabalho. Caso contrário, de que serviria experiências de 1, 2 ou 3 meses em em 50 empresas se nem ao menos pode ser usado para comprovar as experências de 3 a 5 anos exigidos nos anúncios de vagas de emprego?
  3. Uma experiênsia é sempre uma experiência, mas no contexto de nosso país é mais exploração do que uma oportunidade de desenvolvimento (disso que falo);

Falo por mim... nós que sacrificamos para fazer uma formação, seja ela de qual nível for, não deveríamos mendigar estágios de 1, 2, 3 ou 6 meses de graça e depois permitir ser descartados por empresas. Isso é desvalorizar-se como profissional. As empresas não podem continuar nos vendo como mendigos mas, sim, como colaboradores (cursados, com bagagem profissional) que pode ajudar a empresa a crescer. Digo por mim, nunca mais faço um estágio em nenhum empresa - é a decisão que eu tomei para não alimentar essa máfia. Prefiro servir um pedreiro e no final do dia posso ter uns tostão para comprar pão e óleo.

Por outro lado, às vezes temos que engolir tudo isso, na esperança de que alguma empresa nos faça um contrato ou, quando o estágio é remunerado, ganhar uns trocados para comprar uma saia nova e pagar o autocarro. Ou, quando der, comer melhor.

Pois é. Às vezes precisamos fazer estágios na esperança de dias melhores. 

Muita força aos recém-formados e aqueles que há anos são explorados por empresas na esperança de conseguir um contrato de trabalho! É o que desejo a todos.

Este mesmo texto foi compartilhado algum tempo atrás na nossa Página de vagas de emprego em Cabo Verde no Facebook, e as histórias de estagiários são tristes de se ouvir. Leia aqui os comentários!

Onde conseguir estágios remunerados em Cabo Verde?

Texto de Isaías Cardoso